UOL publica matéria sobre a aluna da EJA, Norberta de Assis, de 99 anos. Confira.

09 de out de 2017 - Publicidade

Às vésperas de completar 100 anos de idade, a estudante mais velha da rede municipal de Salvador esbanja disposição para aprender. Sentada numa fileira à frente dos demais colegas, Norberta de Assis, 99, alterna olhares atentos entre explicações e a lousa branca logo atrás da professora. Tudo sem descuidar do livro sobre a carteira, onde também repousa a bengala.

Embora “a vista não esteja muito boa”, como ela mesma faz questão de enfatizar, a veterana não mede esforços para finalizar as atividades.

Foi assim quando a reportagem a acompanhou em sala de aula na última quarta-feira do mês de setembro. Naquela ocasião, o exercício consistia em juntar um emaranhado de sílabas de modo a formar uma lista de palavras.

Passados alguns minutos, dona Norberta, como é conhecida, seria uma vez mais a primeira a concluir a tarefa.

Frequentadora assídua da Escola Municipal Comunitária Cristo Redentor, situada no Nordeste de Amaralina, bairro da periferia soteropolitana, ela integra o projeto denominado TAP 2 (Tempo de Aprendizagem) –ciclo correspondente a uma das etapas da EJA (Educação de Jovens e Adultos), voltada à alfabetização desses dois públicos.

A etapa de estudos da qual dona Norberta faz parte equivale à antiga 3ª série do ensino fundamental. Ou seja, ao fim de 2018, se concluir o curso com sucesso, dona Norberta sairá oficialmente alfabetizada, com direito a diploma a diploma e tudo o que tiver direito.

“Trabalhei duro na enxada e no corte da mandioca”

Nascida em 17 de dezembro de 1917, dona Norberta é natural da pequena Irará, município do sertão da Bahia distante 140 km da capital. Lá, passou a infância e parte da vida adulta, onde se casou “ainda jovem”. Sua memória remonta aos “tempos em que dava um duro danado” para ajudar os pais.

“Trabalhava na enxada, no corte da mandioca e de fumo. Tudo isso eu fazia. Mas não gostava de ir pra escola.”

Atualmente, dona Norberta mora sozinha. Sustenta-se com a pensão do falecido marido, “graças a Deus!”, e se vira “com quase tudo”, exceto faxinar, lavar e passar. “Pago uma pessoa para limpar a casa uma vez na semana. As roupas, minha filha vem pegar para lavar. De resto, me viro sozinha”, resume ela.

Pouco afeita a datas e números, recobra-se com a precisão dos dedos dos oito filhos que trouxe à luz. “Pari quatro homens e quatro mulheres. Quase todos morreram. Só tenho uma filha viva, essa que vem pegar as roupas e me visitar de vez em quando”, detalha.

Sistema não aceitou a data de nascimento.

Considerado um “acontecimento raro” na rede de ensino, o caso de dona Norberta ganhou ares de ineditismo desde o dia em que ela foi se matricular, no início de 2016.

“Uma vizinha a trouxe aqui para realizar a matrícula. Lembro que o sistema não finalizava o processo, pois constava que havia algum erro de informação. Então percebi que o erro era por causa da data de nascimento de dona Norberta. Fui lá nesse campo e alterei para uma data recente. Depois que o sistema aceitou, atualizamos para a data de nascimento correta e conseguimos finalizar o cadastro”, conta Regina Souza dos Santos, 45, gestora da unidade de ensino.

Em mais de duas décadas atuando na área de educação, Regina diz nunca ter visto alguém com a mente tão longeva como a de dona Norberta.

“Ela é muito ativa, por isso custava a acreditar. Para você ter noção, a única coisa que precisamos adaptar às necessidades dela foi aumentar o tamanho das letras. Quanto às outras atividades, ela faz tudo sem problemas e não atrasa a turma”, descreve Regina, que se diz impressionada com o comprometimento.

“Se começa uma atividade, quer logo terminar. Se não está conseguindo fazer, ela pergunta. Mas sempre termina.”

Foto: Alisson Louback/UOL

“Ela não abre mão de chegar meia hora antes da aula”

Apesar de caminhar com certa dificuldade, o trajeto percorrido até a escola não é empecilho para dona Norberta: ela mora a pouco mais de 50 metros de lá.

A senhora e estudante preza pela pontualidade. As aulas ocorrem das 19h às 21h15. Mas, bem antes do início, a “aluna exemplar” já se faz presente, elogia Paula Souza, 37, coordenadora pedagógica.

“Ela não abre mão de chegar pelo menos meia hora antes. Todos os dias, faça chuva ou faça sol”, atesta Paula.

Neste ano, em razão de uma greve da categoria, os professores precisaram incrementar o calendário letivo. Foram ao menos oito sábados de aulas de reposição.

Adivinhe quem se fez presente em todas elas? “Em dois anos aqui, dona Norberta só não faltou quando a escola não pôde funcionar”, acrescenta a coordenadora pedagógica.

O desempenho no boletim, aliás, comprova que a aluna de 99 anos é de fato a que mais se destaca na turma. “Dona Norberta só tira notas boas. As notas dela são sempre na casa dos 7, 8 e 9”, acrescenta a coordenadora pedagógica.

“Ela tem lugar reservado”

Da residência para o colégio, dona Norberta caminha com o auxílio de uma bengala. Passos lentos. Na bolsa que leva a tiracolo, carrega livro, caderno, caneta, lápis e borracha. “São os companheiros inseparáveis dela”, frisa a professora Dilma Fátima Chagas, 50.

Ao despontar no portão, um vigilante –ou quem quer que ali esteja– não titubeia em ajudá-la. Dois lances de degraus vencidos, e dona Norberta está na sala de aula.

“Ela tem lugar reservado. Desde o porteiro ao pessoal que serve a merenda, todos lhe dão atenção. Depois o primeiro dia em que chegou aqui, dona Norberta mexeu com a escola”, afirma Dilma.

“É muito gratificante chegar todos os dias e ver uma pessoa dessa idade com a mente que ela tem. É um exemplo de que não existe idade nem nunca é tarde para sonhar.”

Foto: Alisson Louback/UOL

Surpresa no momento da matrícula

À época da matrícula, dona Norberta precisou “preencher” um formulário cujos campos a serem marcados eram ditados por uma funcionária. A certa altura, a servidora perguntou se a candidata sabia ou não escrever. Ela fez sinal negativo.

No primeiro dia em sala de aula, porém, “espanto geral”, relembra a professora Dilma: diferentemente do que havia respondido no ato da matrícula, ela guardava, sim, certa familiaridade com a língua portuguesa, pois assinou o próprio nome e reconheceu as letras do alfabeto.

Indagada sobre como teria aprendido a ler a escrever, dona Norberta afirmou não se lembrar, porque disse nunca ter frequentado a escola. “Passei a vida costurando, fazendo artesanato e como dona de casa”, revela. Deixou tudo de lado depois de um derrame que afetou parte dos movimentos da mãe direita, a mesma com a qual cumpre as obrigações escolares.

Nível de abandono das turmas é crescente.

Na unidade onde dona Norberta estuda, os professores, porém, temem o esvaziamento das turmas, uma vez que o nível de abandono é crescente. “Em 2015, tínhamos quatro turmas; em 2016, três; e agora, em 2017, são apenas duas. Ou seja, se esses alunos concluírem e não houver novas matrículas, possivelmente teremos que fechar a escola em 2018. Para que ela funcione, a rede exige um número mínimo de alunos”, afirma a coordenadora Paula Souza.

“A metodologia leva em conta as necessidades dos alunos? Levam, claro. Mas, se não atenderem o mínimo exigido, eles podem, sim, ser reprovados”, afirma a educadora. Com o calendário letivo composto por quatro unidades, são necessários três anos para se alfabetizar.

Em nota encaminhada à reportagem, a Secretaria Municipal de Educação afirma que, em Salvador, existem 79 escolas com turmas de alfabetização destinada a jovens e adultos. Para crianças a partir dos sete anos, são 322 unidades municipais que oferecem o ensino fundamental 1, no mesmo processo de aprendizagem, de acordo com a pasta.

A metodologia de ensino na alfabetização para os respectivos níveis de aprendizado é diferenciada, conforme o grau de conhecimento do aluno.

“Escrita e leitura ajudam a mente a não envelhecer”

Para a gestora Regina, o Brasil em geral carece de investimento no que diz respeito a políticas públicas voltadas para a terceira idade.

“É necessário assegurar a reparação dessas pessoas que não puderam frequentar a escola. Sem falar que pessoas da terceira idade precisam cognitivamente de um estímulo. A partir do momento em que trabalhamos com a leitura, a escrita e a oralidade, isso ajuda a mente a não envelhecer”, ressalta Regina.

Ela cita como exemplo de ação ineficaz o PNE (Plano Nacional da Educação), que, no bojo das 20 metas a serem cumpridas até 2024, nada contempla os idosos. Sancionada em junho de 2014 no governo da então presidente Dilma Rousseff (PT), a iniciativa é um conjunto de diretrizes a serem implementadas num período de uma década por União, Estados e municípios.

Enquanto isso não acontece na prática, a expectativa dos professores e colegas de dona se dá em torno do seus tão esperados cem anos, cuja festa já tem data marcada: será em 20 de dezembro, três dias depois do centenário oficial.

Fonte: Uol Educação
Foto: Alisson Louback/UOL